terça-feira, 29 de julho de 2008

Exposição - MESTRE DIDI - Da Ancestralidade à Contemporaneidade

Texto escrito pelo Washington Olivetto sobre o Mestre Didi





Sua Santidade, Mestre Didi.


A primeira vez que ouvi falar de Mestre Didi foi em Salvador, nos anos 70 do século passado. Naquela época, a Bahia não estava na moda como está hoje, e as coisas eram um pouco diferentes. A Baby do Brasil se chamava Baby Consuelo; a badalada promoter Licia Fabio ainda era a dedicada funcionária pública Licia Fabio; o Trapiche Adelaide da época respondia pelo nome de Bargaço; o atualmente glamoroso Convento do Carmo vivia momentos de plena decadência; o Pelourinho ainda não tinha sido restaurado; dançava-se no Recanto do Sandoval; bebiam-se batidas no Diolino, tomava-se caldo de sururu no Popular, e ninguém imaginava a futura existência de um restaurante japonês chamado Soho. Mas Mestre Didi já era uma lenda.


Nos anos 70, eu era assíduo freqüentador de Salvador e tinha amigos na publicidade, na música popular, nas artes plásticas, na literatura, na alta e na baixa sociedades, em Itapoã, na Pituba, no Rio Vermelho, na Vitória, e no Gantois.
Duda Mendonça me convidava para sua casa em Mar Grande; Caetano e Gil tinham voltado do exílio; Tati Moreno já esculpia seus maravilhosos Orixás; e Mãe Meninha do Gantois chegou a protagonizar, a meu pedido, um anúncio das máquinas de escrever Olivetti criado especialmente para o Dia das Mães de 1979, que caiu num 13 de maio, Dia da Libertação dos Escravos.
Foi nesse tempo que eu fiquei sabendo da existência de Mestre Didi.


Amigos me contaram que ele tinha nascido em Salvador, mas descendia da nobreza africana. E que não era apenas um grande artista plástico: era também sumo sacerdote do culto aos ancestrais Egungun e o único brasileiro que dominava totalmente a língua iorubá. A história me fascinou. Fiquei querendo saber mais.

Nos anos 80, continuei freqüentando Salvador. Me hospedava no Hotel Enseada das Lajes, de dona Maria Castro Lima, no Morro da Paciência (que depois virou a casa da Gal Costa), e aproveitava a boa vontade de dona Maria e seu fiel escudeiro, Bartô, para promover deliciosas feijoadas sergipanas preparadas no próprio hotel com a participação de Licia Fabio, que, naquele momento, iniciava sua trajetória no mundo das promoções.

Numa dessas feijoadas, pedi a Licia que me encomendasse uma obra que adoro e me orgulho de ter em casa: um Xangô esculpido pelo Tati Moreno. (Curiosidade: o Boni, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, também tem um Xangô do Tati em sua casa de Angra dos Reis, merecidamente bem maior que o meu, devo reconhecer.)
Nos anos 80, aprendi um pouco mais sobre Mestre Didi.


Vi alguns de seus trabalhos, soube que ele tinha começado fazendo entalhes em madeira, depois passou a esculpir exus em cimento e barro e, aos 29 anos, já tinha publicado o seu primeiro livro, “Iorubá tal qual se fala”, com prefácio de Jorge Amado e ilustrações de Carybé.

Cogitei pedir que me apresentassem a ele, mas desisti, imaginando, com razão, ser muita pretensão da minha parte.

Só em 1996, impactado por sua Sala Especial na 23ª Bienal Internacional de São Paulo, por suas peças no Museu Picasso e no Museu Georges Pompidou, tomei coragem e decidi: “Um dia, vou conhecer Mestre Didi.” Coisa que só veio a acontecer em agosto de 2000.

Acompanhados dos amigos Katia e Walter de Mattos (dono do jornal esportivo Lance!) e da velha amiga Licia, que agendou a visita, Patrícia e eu estivemos na casa de Mestre Didi, no bairro de Ondina, em Salvador.

Fomos recebidos por ele e pela mulher, a antropóloga argentina Juanita Elbein dos Santos. A atmosfera era mágica. O espaço, fascinante. Juanita, extremamente articulada e falante. Ele, absolutamente compenetrado e silencioso.

Estivemos na sala de esculturas e eu resolvi comprar uma delas, qualquer uma, mas não sabia que linguagem usar. Talvez fosse mais educado procurar numa das muitas galerias que representam Mestre Didi mundo afora. Perguntei a Juanita, que me deixou inteiramente à vontade.

Escolhemos, Patrícia e eu, um cetro com nervuras de palmeiras, couro, búzios e contas. Compramos, exultantes.

De repente, Juanita nos convidou para conhecer o estúdio de trabalho de Mestre Didi, nos fundos da casa.


O espaço não era tão grande, mas passava a sensação de ser imenso. Havia algumas esculturas inacabadas, ferramentas e material de trabalho espalhados pelo chão.
Num canto, uma mesa relativamente arrumada e, em cima dela, uma impressionante, quase realista, escultura de um esguio jogador de futebol negro, feita com nervuras de palmeiras pintadas em diferentes cores.

Eu e Walter de Mattos, fanáticos por futebol, ficamos extasiados e, pela primeira vez, Mestre Didi falou que a escultura representava a ele quando moço.
Me dirigi ao canto onde estava Juanita, que entendeu imediatamente o que eu pretendia dizer e se antecipou: “Essa é dele; ninguém pode ter.”

Voltamos para a sala, e Mestre Didi ficou no estúdio.
De repente, apareceu com o jogador de futebol nas mãos, entregou-o a Juanita e disse, apontando pra mim: “Ele pode ter.”
Naquele momento, não me senti presenteado. Me senti abençoado.
Meia hora depois, já parecíamos velhos amigos.
Prometi a Juanita ajudá-la na divulgação do II Encontro Internacional de Direitos do Homem e Diversidade Humana, que ela estava organizando para outubro daquele ano. Trocamos telefones e nos retiramos, eufóricos, com as esculturas debaixo dos braços.


8 de julho de 2004. Nascem meus filhos gêmeos, Antônia e Theo.
Dias depois, recebo uma carta que, desde então, está emoldurada no quarto das crianças:


“Caros Washington e Patrícia,

Omo l’okùn
Omo ni de
Omo ni jingindinríngín
A mu se yi, mu s’òrun
Ara eni

Um filho é como contas de coral
Vermelho
Um filho é como cobre
Um filho é como alegria
Inextinguível
Uma honra apresentável
Que nos representará depois da morte

Oriki nagô, cantado em homenagem ao nascimento de um filho.
Quando gêmeos, repetir a saudação duas vezes.
Junto ao oriki, nosso abraço compartilhando alegrias.

Juanita e Didi

Em Salvador, 27 de julho de 2004.”



Washington Olivetto

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